Non scholæ sed vitæ discimus

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O maior Bonequeiro do Ceará; Quiçá de todo o mundo!

Para aqueles que ainda não conheciam a expressão “Botar Boneco”, eis que faço revelar nas linhas abaixo a semântica e abrangência desta expressão do neo-cearensês. “Botar Boneco” é isso! Os outros são apenas pálidos arremedos do insubstituível e inigualável Canoa Doida.

O Canoa Doida – Suma Biográfica
Por Clovis Ferreira da Cruz Ribeiro de Campos


Dentre todos os viventes, ninguém pôde exceder a fama de bonequeiro que Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, alcunhado o Canoa Doida, conquistou entre seus fâmulos e pares, hodiernos e d’antanho.

Ente legendário e inapagável nas tradições orais e escritas do nosso Ceará, o Pe. Verdeixa é dos raros vultos cuja sobrevivência se alicerça sobre anedotas; Figura antológica e curiosíssima; Reputação perpetuada por diabruras e facéceis. Deixou fama imperecível na crônica antiga do Ceará. João Brígido, seu primeiro biógrafo e amigo consagrou-lhe as primeiras trinta e seis páginas do seu livro, O Ceará – Lado Cômico, 1899. 


Diz o mesmo João Brígido que não se sabe ao certo o local do seu nascimento: Se no Rio do Peixe na Paraíba, atual Cajazeiras; Se em Goiana, Pernambuco; Se em Mossoró no Rio Grande do Norte ou no Crato no Ceará.

Terra de contrastes e extremos, esse nosso Ceará véi de guerra! 


Terra que produziu figuras das mais dignas e notáveis; Sacerdotes probos e íntegros, da envergadura moral de um Pe. Ibiapina. Como comparar o modus vivendi do Pe. Verdeixa diante do exemplo de cristandade e pundonor que fora o Pe. Cícero Romão Batista?! 

Todavia, o Ceará gerou aquele que fora o Anti-Cristo em batinas.

E pior...

Conterrâneo do mesmo Pe. Cícero!

Para dirimir quaisquer dúvidas dos historiadores quanto às origens do Canoa Doida, fazemos o traslado na íntegra, dos termos do seu assentamento batismal:


ALEXANDRE, filho natural de Feliciana Maria da Conceição, natural da Villa de Goiana; neto materno do Alferes João Mendes Monteiro, natural da Villa de Goiana e de D. Maria dos Milagres dos Anjos, natural da mesma Villa de Goiana. Nasceu a 3 de janeiro de 1803 e foi baptizado a 14 do mesmo mêz e anno, por mim, Cura abaixo assignado, recebendo os Sanctos Oleos, nesta Igreja Matriz de Nossa Senhora da Penha da Villa Real do Crato. Foram padrinhos o Tenente Antonio Pereira Pinto e sua tia materna Anna Rita da Luz, do que, para constar mandei fazer este assentamento, em que me assigno: Miguel Carlos Saldanha, Párocho.”


Afirmam seus contemporâneos que desde tenra idade se singularizou pelas perversas peraltices no estilo Pedro Malasartes. Nunca conheceu o pai. Sua mãe, Dona Feliciana, retrincada e indulgente, bambeava-se entre “as sandices do marido e as traquinadas do filho”, casada com o mestre de latim Joaquim Teotônio Sobreira, gandaieiro boêmio e coió em segundas núpcias.


Em 1824, Verdeixa passou das traquinadas da infância às aventuras da adolescência, alistando-se nas forças republicanas da Revolução de 1824 que, sob o comando de José Pereira Filgueiras e Tristão Gonçalves de Alencar, ocuparam a vila cearense do Jardim, tomando parte no massacre dos presos e na roda de pau que se lhes aplicou, dando de cacete, com as duas mãos, em muitos pacientes, até caírem inanimados. Após derrota dos rebeldes, passou-se para os legalistas do Coronel Agostinho José Tomás de Aquino, de terribilíssima memória, apud o sempre estribado Barão de Studart.

Aqui nos detemos em deslinde de algumas informações que conhecemos desta outra curiosíssima e controvertida figura do nosso passado....

O Cel. Agostinho José Tomás de Aquino!

Agostinho nasceu em terras cearenses, precisamente na Vila do Icó e não na ribeira do Rio do Peixe na Paraíba, como muitos afirmam, inclusive o sempre abalizadíssimo mestre Geraldo da Silva Nobre.  

O párvulo Agostinho teve seu batismo feito pelo Padre André da Silva Brandão, sem os Santos Óleos, aos 29/10/1789, uma quinta-feira, na Igreja de Nossa Senhora da Expectação. 

Ele filho legítimo do casal Bernardo Ribeiro Campos, português, natural do Arcebispado de Braga e de Dona Gertrudes da Silva do Montserrat, natural daquela mesma Vila do Icó. Agostinho teve como padrinhos Bernardo da Silva Brandão, potentado daquela região e Teresa de Jesus, ambos solteiros, subscreveu seu batistério o Padre José de Almeida Machado.  

A mãe do Cel. Agostinho, Dona Gertrudes da Silva do Montserrat era de tradicional família radicada naqueles sertões, pois neta pelo flanco paterno do Capitão Agostinho Duarte Pinheiro, sesmeiro consorciado a Vasco da Cunha Pereira e o Alferes Bernardo Duarte Pinheiro... 

In verbis: 

De uma sorte de terra de três léguas, nas quais existem umas lagoas que desaguam no rio Salgado, abaixo do Boqueirão” (Boqueirão Lavras da Mangabeira). 

A sesmaria  em tela foi concedida pelo Capitão Mor Manoel da Fonseca Jaime aos 22 de fevereiro de 1717. (Conf. Págs. 50v.a 51 do Livro Nº. 08 das Sesmarias).

O Cel. Agostinho recebeu Carta Patente no posto de Capitão de Ordenanças aos 09 de setembro de 1812 da pena do governador Manoel Inácio de Sampaio, através do excelente relacionamento que Agostinho mantinha com José Rabelo de Sousa Pereira, então secretário do governador Sampaio e anteriormente do governador Luis Barba Alardo de Menezes.

Adrede Agostinho José Thomas de Aquino recebeu a Carta Patente do posto de Coronel de Milícias ainda quando dos conservadores no poder. 

Foi dignitário da Ordem do Cruzeiro recebendo também a Comenda da Rosa. 

Alcançou Agostinho a vice-presidência da Província do Ceará.

O Coronel Agostinho promoveu dura, violenta e encarniçada oposição ao seu rival João André Teixeira Mendes, o Canela Preta, pelo poder no Icó, pois ambos dotados de portentosa tara pelo prestígio e mando.

Viu-se o Coronel Agostinho implicado no assassinato do Major João Facundo de Castro e Menezes, apud o Barão de Studart, que o detestava...

Litteratim et verbatim: 

“Esse homem, a quem o Cel. João Brigido descreve como um lobo carniceiro, tramoso e sereno, capaz das maiores perfidias e crueldades, sem um franzir de cara, sempre a fallar manso e adocicado, ainda mesmo arrancando um desgraçado dos braços da mulher e dos filhos para fazel-o fusilar como aconteceu na Várzea das ceroulas” Guilherme Surdart.

O Cel. Agostinho foi assassinado por envenenamento da água (de um pote) que era servida na sede da Assembléia Legislativa da Província em Fortaleza. Pelo que veio a falecer no Icó aos 19/01/1942.  

- Considerando o lapso temporal, tendo ele suportado todo o trajeto de Fortaleza ao Icó e vindo a falecer 32 dias após o evento da reunião na Assembleia Legislativa inferimos que o veneno usado fora o Arsênico.  

Mas não nos descuremos do nosso “herói”...

Durante seis anos, de 1824 a 1830, nosso Padre Verdeixa "cursou" o seminário de Olinda, ordenando-se em 1831 e sendo logo nomeado vigário da Vila de São Vicente Férrer das Lavras da Mangabeira, na região sul do Ceará.

Como e por que se decidiu a seguir a carreira eclesiástica, quando até então não denotara a menor propensão para ela e os pendores naturais do seu espírito o inclinavam a outros rumos, é coisa que jamais conseguiremos saber. 

Que se poderia esperar dum sacerdote, sem vocação formal e sem preparação adequada, solto num meio agitado como a região do Cariri naquele tempo? 

Teceu ali uma “enredada diabólica” malquistando o nosso Cel. Agostinho com Pinto Madeira, o infeliz rebelde de 1832, satirizou o perverso advogado Simplício José Rocha..."Cuja a sobrinha o tio atocha", insinuando um romance do advogado com a sobrinha que vivia em Oeiras no Piauí. 

Desancou em versos o famigerado João André Teixeira Mendes, o Canela Preta, tecendo um ABC em carretilha de péssimo gosto.

Levou à ruína o juiz leigo Antônio da Rocha Moura, pois o próprio Verdeixa, pasmem... 

Apeou do cargo o promotor da comarca e o substitui no julgamento do Canela Preta, ato contínuo conseguiu arrancar daquele juiz leigo a seguinte sentença, mesmo depois da absolvição pelo juri do réu...

In litteris

"Inconformado com decisão do juri declaro o réu culpado das acusações e o condeno a morte por enforcamento" (sic).

Pena que foi comutada para banimento. 

Nos casamentos que celebrava ofendia os noivos com pilhérias indignas do seu sagrado ministério. Daí o ódio que o cercou e o obrigava a viver sempre de sobreaviso, ocultando-se, fugindo e homiziando-se.

Diz ainda o desabusado historiador João Brígido, que o Pe. Verdeixa tinha uma especialíssima devoção pelo Sacramento do Matrimônio. 


De todas suas fainas como cura d’almas, a que mais o aprazia era exatamente a celebração das núpcias. Deixou de comparecer a incontáveis celebrações de sua inteira responsabilidade, e.g.: Batizados; Primeira Eucaristias; Unções de Enfermos, etc e etc. Porém, nunca a um casamento! Sempre diligentíssimo, chegava onde quer que fosse e/ou sob qualquer intempérie climática, horas de antecedência da celebração.

Entendamos o porquê desta curiosa predileção:

Ardiloso, furtivo e malvado, o Canoa Doida, ouvia primeiro a confissão da nubente, uma vez percuciente da vida pregressa da indigitada, ameaçava logo a infeliz de revelar ao futuro esposo e até mesmo a toda urbe, certas minudências daquela confissão. Ato contínuo de posse daquelas valiosíssimas informações, angariava com imensa facilidade os favores sexuais da noiva sob o prenúncio de dar com a língua nos dentes. 


Destarte, a noiva poderia conceder seus favores alí mesmo, in situ (dentro do confessionário) ou preferencialmente no interior da sacristia, dispositivo que oferecia maior espaço e conforto, prestando-se com maior eficiência à volúpia e demais caprichos sexuais do nosso Canoa Doida.

Mestre em ações indecorosas, quando não obtinha da noiva confissões mais “significativas”, não se continha, e fazia toda sorte de propostas imorais. Foi mesmo espancado por um noivo que não pôde suportar os excessos do padre.

Teve de deixar o sertão e vir para Fortaleza, onde se tornou logo inimigo do presidente da província, o Padre e Senador Martiniano de Alencar. 

Enganou os pobres índios mansos que ainda viviam na povoação de Arronches, hoje Parangaba, fazendo-os assinar uma representação em termos tais que o levou à cadeia. 

Blaterava por toda parte contra o presidente Alencar e, caçado pela Polícia, refugiou-se na casa do negociante português, Martinho Borges, onde demorou o tempo que quis, obrigando-o a tratá-lo a vela de libra sob a ameaça de denunciar-se às autoridades, o que acarretaria os piores aborrecimentos ao seu hospedeiro, verdadeira chantagem!

Ia a cavalo insultar Alencar debaixo das janelas do palácio do governo, gritando-lhe a alcunha – Padre Cobra! E fugindo imediatamente a galope.

Juiz de paz em Baturité, praticou as maiores arbitrariedades...Quando o quiseram prender, escondeu-se num buraco coberto por uma tábua sobre a qual sua mãe placidamente fazia renda, trocando os bilros na almofada.


Mal os da força pública, que não o tinham encontrado se distanciavam, insultava-os duma janela. Voltavam, davam busca na moradia e nada. Ele estava no buraco sob as saias rodadas de Dona Feliciana.

Envolvido numa tentativa de morte contra o presidente brigadeiro José Joaquim Coelho, mais tarde Barão da Vitória, defendeu-se pessoalmente no júri a que o submeteram, encalacrando seu companheiro, o velho capitão-mor Barbosa. Quando este lhe perguntou por que lhe fizera tanto mal, respondeu que, se ele fosse solto, passaria fome na cadeia, porquanto até ali vinha comendo do que a família do respeitado ancião mandava. 


Corria que tinha o dom da presciência, avisando às pessoas dos desastres iminentes que as ameaçavam e adivinhando a chegada das patrulhas que o procuravam. Ia se tornando aos poucos um personagem lendário.

Tantas fez, que se viu forçado a procurar outros ares...


Embarcou para o Sul e conseguiu a nomeação de vigário de Carapebus, na província do Rio de Janeiro. Ali amotinou contra si todos os espíritos, de forma tal que o amarraram às costas dum cavalo e o levaram até fora dos limites da paróquia. Encontrando um conhecido no caminho, disse-lhe que aquela boa gente o amava tanto que o levaram daquele jeito para que não fugisse aos seus carinhos.

Era uma alma feita de violentos contrastes, ora de energúmeno, ora atrabiliário, ora cheia de “doçura angélica”.


Suas aventuras foram sempre, no fundo, traquinadas ou molecagens. Parece que não deixou de ser criança. 

Não falam os seus cronistas de eventos amorosos na sua vida agitada e inquieta, em que as paixões políticas do momento predominavam. Contudo, sabe-se que foi pai de quatro crianças, (dois meninos e duas meninas), de diferentes genitoras, abandonando-lhes, deixando para que as mães desamparadas e o mundo os criassem ao seu inteiro talante.

Em 1848, de novo no Ceará, redige o “Juiz do Povo”, panfleto à maneira do “Pére Duchêne”, de Herbert, na Revolução Francesa, mal escrito e atrevido, que atacava tudo e todos em prosa e verso. Bastante eclético e verborrágico redigiu os pasquins: O Monitor; O Diabinho; O Torpedo; O Condor e A Onda, todos de péssimo gosto, pululados de obscenidades e linguagem vulgar que enlameava inclusive, a boa fama dos seus pares clericais.

Vigário de Soure, atual Caucaia, ali lhe imputaram crimes de morte. Preso em Pacatuba por escrever libelos anônimos, foi mandado sob escolta para Fortaleza. No caminho, convenceu aos soldados que o deveriam amarrar para não fugir. Assim o fizeram e, ao entrar na cidade, o povo, vendo um sacerdote ajoujado e lacrimoso, encheu-se de indignação, atacou os guardas e o libertou.

Deputado provincial nas legislaturas de 1848 e 1868, apesar dos 20 anos que as separam, em ambas nada mais fez senão pilhérias, travessuras e meter os colegas em ridículo.


De Fortaleza saia para farras nas vilas próximas – Maranguape, Pacatuba e Baturité, onde sempre se embriagava e pintava o sete. 

Irrequieto e andejo, acabou mudando-se para o Aracati, de onde regressou moribundo à capital da província, embarcando num pequeno veleiro. Morreu, pouco depois de desembarcado, na Santa Casa de Misericórdia, segurando nas mãos hirtas, um pacote com 400 mil réis, pelos quais vendera um velho escravo que o servia.

Fora na verdade uma canoa doida, levada aos trambolhos pelo rio da vida, figura curiosíssima do nosso passado a desafiar um profundo estudo psicológico.



Finis Coronat Opus


Bibliografia:

1) A margem da história do Ceará, Gustavo Barroso;

2) Onde e quando nasceu o Pe. Verdeixa, Leonardo Mota;


3) Liv.  Bats. Icó. ..83/..96. Pág. 102v 

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